Sim, o resultado foi maravilhoso,
melhor do que o esperado e tudo que nós desejávamos. Dois dias depois ela falou
‘papai’ pela primeira vez. Nenhuma palavra dita antes pelas meninas foi tão
emocionante quanto essa. Nem a primeira, nem ‘mamãe’. Não pelo significado
estrito da palavra. ‘Papai’* foi a palavra da superação, da vitória, da
permissão de um futuro normal e digno para a minha filha, para as minhas
filhas, para nós todos.
E depois veio ‘vovó’ e não ‘bobó’,
‘pato’ e não ‘akto’... e todo um universo de palavras maravilhosas de se
ouvir. Veio também a imitação entre as duas, agora não temos mais a Carol que
fala como um bebê normal e não tem outro bebê para imitar, agora temos dois
bebês com fala normal que se imitam, se entendem, se corrigem (quem tem gêmeos provavelmente
sabe do que estou falando).
Mas temos algo que eu nem
imaginei que não tínhamos. Temos duas filhas felizes. A felicidade das duas
está interligada (é mágico, e angustiante tendo agora minha experiência). A
Beatriz era infeliz por não conseguir falar e a Carol era infeliz por sua irmã
não conseguir falar. Não era algo que eu tinha notado ANTES da cirurgia.
Notamos todos DEPOIS da cirurgia. Virou assunto de conversa e de observação
entre a família. A Bê se libertou, se tornou uma criança mais leve, segura,
risonha. FELIZ. Hoje ela gargalha, ela vem correndo e sorrindo, nos enche de
beijos... ela era bem retraída, ria baixinho... É impossível não associar a
felicidade dela(s) com o resultado da cirurgia, junto com ‘papai’ vieram as
gargalhadas. Não era um traço da personalidade dela, era um traço da limitação
dela. Como pode um bebê sofrer assim? Mas pode, eu sei, eu vi, eu chorei de
tristeza por perceber isso e sorrio cada dia mais por saber que isso é passado.
E torço para que essa memória vá-se embora junto com o abençoado esquecimento
infantil.
Tem tantas coisas que eu gostaria
de comentar sobre a cirurgia... detalhes técnicos do pré e do pós-operatório...
como ela reagiu, como nós reagimos... a alimentação, o dengo... o ‘sumiço’ das
disfunções de fala... Mas quem sabe em outro momento? Eu demorei MESES para dar
esse retorno, talvez uma hora eu pare e escreva exatamente sobre a nossa
experiência.
Eu lamento, do mais profundo
possível do meu coração, não termos descoberto a fissura de palato antes.
Certas dificuldades teriam sido superadas mais facilmente, outras teriam ao
menos sido explicadas, determinados sofrimentos não teriam existido... Mas
agradeço todos os dias por termos descoberto a tempo de corrigir com a
possibilidade de não haver sequelas. Pela Gisela, fono do CRAID, por ter
surgido nas nossas vidas, por ter desconfiado mesmo sem saber reconhecer
fissuras de palato submucosa. Pela Mônica, dona do Blog Pequenos Guerreiros,
por ter postado sobre o CRAID, por manter o blog, por acreditar que pode fazer
a diferença e POR TER FEITO. Pelo trabalho sem igual do Dr. Marco Aurélio
Gamborgi, cirurgião plástico, que entregou à minha filha a FELICIDADE. Pela
vida, por ter me ensinado o que é amor, o que é superação, o que é comemorá-la dia
após dia. Por todos que acreditaram, que torceram.
E vamos superando, passo a passo.
O que não dá para mudar, adapta-se. O que dá para mudar, corrige-se. Com mais
leveza. Com mais alegria. Com mais FELICIDADE.
*Porque a palavra ‘papai’?
Pessoas com fissura de palato podem ou não ter disfunções de fala. A Beatriz
tinha. Disfunção velo faríngea e articulação compensatória. ‘Papai’ foi a
primeira palavra que ela disse normalmente depois da cirurgia.
Basicamente é isso: Conhecemos a
disfunção velo faríngea como ser fanho, o ar sai pelo nariz, por conta da
fissura a pessoa não consegue fazer ou ter pressão do ar na boca. Sons como do
‘p’ e do ‘v’ podem se tornar impossíveis de serem feitos. A Bê chamava o pai de
‘não mamãe’, de tanto dizermos à ela que era ‘papai e não mamãe’ (como muitos
bebês ela chamava os dois de mamãe, isso é normal, chamam-se avós e outros
cuidadores assim também). Ora, para bom entendedor de português (bebês filhos
de falantes de português são ótimos), aquele ‘e’ na frase pode ser uma
conjunção. Ela entendia como ‘filha, o nome dele é papai E não mamãe’ e não
como ‘o nome dele é papai, não mamãe, como você vem falando’. Depois da
cirurgia, quando ela finalmente conseguia falar como nós, não-fissurados, ela
decidiu usar o outro nome dele, ‘papai’, como outras pessoas também falavam,
inclusive a irmã gêmea.
Já a articulação compensatória é
menos conhecida por nós mortais, provavelmente você já ouviu alguém falando
assim, não entendeu patavinas do que ela disse, mas chegou à conclusão que ela
tem algum problema. Deficientes auditivos e pessoas com fissura costumam ter
essa disfunção. A fala sai com soquinhos e raspadinhos feitos pela garganta e
entende-los pode ser muito difícil ou até mesmo impossível para quem não
convive com a pessoa e até mesmo para os cuidadores habituais. Eu entendia
algumas das palavras que a Bê falava, mas nem de longe todas. Talvez se ela
continuasse com a disfunção em algum momento eu aprendesse o significado de
cada barulhinho que ela fazia. Mas era extremamente frustrante. Para todos nós
que convivemos com ela e particularmente, óbvio, para ela. Ela falava, falava,
repetia e não entendíamos o que ela queria. Ela começou a falar cada vez menos,
usar apenas palavras que conseguia falar (palavras com ‘m’, ‘n’ e vogais),
apontar e gritar. Eu chorava pensando no futuro dela, em como ela iria lidar
emocionalmente com essa dificuldade, em como as duas irmãs gêmeas iriam lidar
com essa disfunção. Começamos a pensar seriamente em educa-las em casa o máximo
possível, para não jogá-la tão cedo no mundo cruel das crianças na escola. Mas
a cirurgia corrigiu isso também, imediatamente ela parou de fazer os
barulhinhos. Ela fala ‘pato’ ao invés de ‘akto’. Fala ‘Caól’ ao invés de ‘Kagl”
(para Carol).